“Ricardo e Vânia” e os araraquarenses

K
3 min readNov 22, 2020

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É muito difícil encontrar um araraquarense que não seja um tanto bairrista. A gente sai da cidade, quer ganhar o mundo, viver nas capitais, parar de falar “pôrrrta”. Mas continuamos sempre tão, tão araraquarenses. Sempre com aquela sensação de que “eu conheço esse lugar como a palma da minha mão”.

A gente não cansa de falar da visita do Sartre e da Simone de Beauvoir, em 1960. De como Macunaíma foi escrito na chácara Sapucaia. A gente usa todas as oportunidades que tem, e até as que não tem, pra falar do Zé Celso e do Luiz Antônio. E eventualmente a gente lembra do Ignácio de Loyola Brandão. Recentemente, a Liniker, os Caramelows e o Jão (que na verdade é lááá de Américo) também ganharam reconhecimento e nos fizeram atualizar a lista dos orgulhos locais.

Mas foi em 2017 que nosso Hall da Fama foi remendado. Remendado porque “atualizado” com certeza não dá conta do que aconteceu. Eu só conhecia o Ricardo como Fofão. Não sabia nem do nome, nem do complemento geográfico. Na minha lembrança, ele sempre foi de Araraquara. Não sabia da sua fama na capital e, pra ser sincera, não pensava nele há muito tempo. Foi só quando li a matéria do Chico Felitti no BuzzFeed que me lembrei da figura.

Consegui resgatar na memória duas lembranças com Ricardo. Ambas devem datar de 2009 ou 2010, mas não tenho certeza. Lembro dele todo de preto, bem arrumado, distribuindo panfletos na rua dois. Lembro que entrou no Shopping Lupo, conversou com pessoas num balcão e se exaltou por algum motivo. Lembro de mulheres falando que ele era louco depois que saiu. A outra lembrança é ainda mais turva. Acho que ele esteve lá na quadra da casa da cultura, conversando com as pessoas durante um pocket show maldito, evento mensal que começava depois da meia noite e misturava shows musicais com outras apresentações artísticas. Acredito que a maioria das pessoas que andavam por Araraquara nessa época tenham lembranças semelhantes.

Chico, ao escrever a matéria e, depois, um livro sobre o personagem da Augusta, incluiu um adendo no hall da fama alternativo araraquarense. Agora, quando a gente fala do Zé Celso, de Macunaíma, da visita dos existencialistas, a gente já engata junto as histórias e lembranças com o Ricardo — “o fofão da augusta, aquele da matéria do BuzzFeed, sabe?!”

O que será que isso diz sobre a gente? Por que demorou tanto pra gente descobrir o nome do Ricardo? Por que até hoje a gente não sabe o nome de outras figuras que percorrem nossas ruas, nossos teatros, nossos bares? Por que eu continuo sem saber o nome do “come bosta”, cujo “apelido” escrevo envergonhada? É descuido? É só preconceito? É medo? Será que quando um Chico Felitti da vida contar a história dele para o mundo, a gente vai se apropriar também? A gente vai finalmente considerá-lo um cidadão araraquarense? Não sei. Não tenho resposta, só um pouco de vergonha.

Ainda assim, quando passo acompanhada por um não-araraquarense pelo letreiro piscante no muro da rua 8, na altura do Faveral, eu sempre falo “oh! É aqui o salão de cabeleireiro do irmão do Ricardo, o fofão da matéria do Chico Felitti!” E por algum motivo isso me dá uma sensação de orgulho, de pertencimento, reconhecimento. Ironicamente, todas as sensações que Araraquara fez de tudo pro Ricardo não sentir.

[Ah, e se quer saber se o livro é bom, a resposta é sim. Sensível, sincero, agridoce. Achei ótimo — mas talvez seja só minha alma araraquarense falando.]

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